Se tenho inveja? Tenho. De quem escreve assim.
Acasos
Nunca os meus pais me impuseram, sequer de forma disfarçada, opções profissionais. Doutora, engenheira, professora, cabeleireira, bailarina... que eu fosse o que eu quisesse, mas que fosse com entrega, com brio, com consciência. Com orgulho. Alguns conselhos e muitos acasos trouxeram-me a este mundo, este lugar onde injeto, a conta-gotas, um doce e alucinogénio veneno na sociedade. Não me orgulho mas divirto-me muito. E para me redimir, escrevo este blogue. Não é, portanto, com a pretensão de fazer literatura ou de me elevar a um nível superior no domínio da palavra que aqui venho anotar o que me vai na cabeça e no mundo. É para compensar, com alguma verdade, as mentiras que escrevo durante o resto do dia. Por isso, quando os leitores me abordam elogiando-me a escrita e insinuando que eu já devia ter publicado em papel, com direito ao nome na lombada, agradeço do fundo do coração mas, sem falsas modéstias, creio que me sobrevalorizam. Não trabalho arduamente na escrita deste blogue, não me isolo, não esmiúço a palavra nem me demoro a esculpir frases para que a forma final resulte perfeita e assombrosa. Cada texto que aqui escrevo representa, às vezes, menos que cinco minutos de intervalo na rotina, impostos à minha consciência por algum diálogo que ouço, algum movimento que pressinto, alguma imagem que me salta aos olhos e que me ficam a fermentar em todos os cantos do corpo. Não faço rascunhos, não corrijo, não disseco, não exploro, não ensaio, não leio em voz alta. Escrevo como penso e como digo, não como pretendo ser lida. A minha urgência é apenas a da denúncia. Acontece às vezes, por um mero e feliz acaso, que a palavra perfeita esteja no lugar certo à hora certa e então os meus textos resultam mais bonitos, mais equilibrados, mais redondos, mais inspirados ou inspiradores. Só que os verdadeiros escritores não se fazem de acasos, antes de trabalho dedicado, generoso e abnegado sobre a palavra, as suas formas esignificâncias, a sua métrica, a sua ligação com o real e com o imaginário.